A complexa dinâmica da produção de veículos exige que a cadeia de fornecedores opere de forma cada vez mais conectada.
Você leu certo. Não é vulcão, é VUCA mesmo. Quando se fala em ambiente VUCA, sigla em inglês para volátil, incerto, complexo e ambíguo, a indústria automotiva é um exemplo interessante de como a incerteza é uma constante no mercado atual. A partir de uma visão superficial, parece que há muito tempo poucas são as mudanças no processo de fabricação de um automóvel: são carros que saem diariamente da linha de montagem com mais ou menos alterações de design, conforto e desempenho. No entanto, para que esta cena seja possível de se repetir em plantas de todo o mundo, existe uma complexa cadeia de abastecimento, operando de forma sincronizada e cada vez mais conectada entre si e com o consumidor final.
Desde o modelo T, preto, de Henry Ford, até o carro elétrico de hoje, muitos dispositivos foram desenvolvidos e acrescentados à linha de produção. Para se ter uma ideia, um carro médio pode levar em torno de cinco mil componentes ou mais, dependendo do modelo. Como em uma peça de teatro, cada parte do veículo é um ator e tem seu momento específico de entrada no palco. Na linha de montagem é a mesma coisa, existe uma sequência a ser respeitada na construção do produto. Imagine a complexidade de se lidar com todos os fornecedores destes componentes, considerando os diferentes modelos produzidos pelas diversas montadoras. Uma ruptura no abastecimento de um único item pode causar a parada de uma linha inteira. Só que ao contrário do teatro, não há chance de improvisar. É por este motivo que as montadoras mantêm sistemas de avaliação de performance de seus fornecedores e aplicam penalidades quando há falhas no fornecimento, que podem ser financeiras ou relacionadas a negócios futuros com aquele fornecedor.
Orquestrar todo o processo que envolve a fabricação de veículos não é fácil. Claro que sem tecnologia, seria impossível coordenar todas as etapas, considerando que cada fornecedor tem sua rede de fornecedores e precisa planejar, comprar, receber e produzir em um efeito cascata por várias camadas. Por exemplo, o fabricante de bancos, para atender à demanda de uma montadora, precisa de espuma, tecido e vários outros itens para produzir seu produto. Um mesmo fabricante pode comprar itens nacionais e importados, o que requer cronogramas diferentes de planejamento. A cada pedido, uma série de ações são requeridas. Percebe-se que além da tecnologia aplicada ao processo produtivo, existe outra parte fundamental que é a comunicação entre os elos da cadeia. Portanto, receber a informação correta e no tempo certo para a tomada de decisão é crucial para sobreviver neste ambiente. O desafio é que as informações mudam o tempo todo, conforme as variações do mercado. É preciso ser ágil para evitar estoque parado, assim como lidar com a variação cambial e os prazos dos insumos importados, adequar a produção às variações de volumes. Não basta dançar conforme a música, é preciso prever qual será o próximo ritmo na pista.
Hábitos e preferências vêm e vão
Ampliando a visão para além da cadeia de abastecimento, é possível entender como o ambiente VUCA impacta toda a indústria automotiva, hoje mais do que nunca. Temas como energia limpa, mobilidade, carro conectado, compartilhado, autônomo, recebem cada vez mais destaque. Até o início dos anos 2000, o acendedor de cigarros era um item de certa relevância nos carros. É que hoje em dia, o hábito de fumar, além de não ser saudável, é comum a muito menos pessoas em comparação à necessidade de carregar o celular. Foi assim que o espaço no painel, que pertencia ao acendedor, foi ocupado pela entrada USB. Imagine hipoteticamente o que aconteceria a um fabricante dedicado a produzir exclusivamente isqueiros automotivos. Embora o celular não tenha nada a ver com cigarro, indiretamente causou a morte do acendedor.
Este é apenas um exemplo. Dá para encontrar muitos outros dentro de um carro comum, que mostram o quanto a cadeia de fornecedores da indústria automotiva se movimenta a partir da introdução ou substituição de dispositivos que refletem comportamentos e preferências do consumidor. Ao se pensar de forma ainda mais ampla, na questão da mobilidade, pode-se prever que vários outros produtos ou mesmo empresas devam surgir e desaparecer em um futuro bem próximo, várias delas relacionadas diretamente com o setor automotivo.
Efeito pandemia
Como se tudo isso já não bastasse, veio a pandemia do novo Coronavirus, uma verdadeira e inesperada disrupção que, ao mesmo tempo em que reduziu o volume de produção e de vendas de veículos, despertou desejos diferentes no consumidor. Hoje, há o grupo interessado em trocar o transporte coletivo pelo carro próprio, como forma de proteção. Outro, que mudou sua rotina, reduzindo a necessidade de deslocamento por conta do trabalho home office. Ainda há os que adotaram outros meios de locomoção mais saudáveis, como a bicicleta, sem contar aqueles que se desfizeram do carro para reduzir despesas. Enfim, para cada cenário, há muitos desdobramentos tão possíveis quanto incertos.
É importante lembrar que este setor tem múltiplas faces. Ainda considerando os efeitos da pandemia novos comportamentos se destacaram, como o aumento na preferência por entregas expressas, que pode impactar a venda de motos ou de veículos utilitários, por exemplo. Mas tudo isso pode ser volátil e mudar novamente se a vida voltar ao ritmo pré-pandemia. Por enquanto, tal cenário vem propiciando novas possibilidades para as empresas que sabem identificar as oportunidades que surgem de situações imprevistas e conseguem entregar valor diferenciado, entendendo como usar a tecnologia a seu favor. E para isso, é preciso aceitar que o mundo VUCA se manterá em erupção por tempo indeterminado.
Em tempos em que a incerteza assumiu o protagonismo, regenerar constantemente a dinâmica das relações é essencial para se manter no jogo.