Diante da pandemia, imagino que não diferente de outros ramos, os profissionais do mercado automobilístico deram de cara com a assombração do passado: velhos hábitos e costumes que tinham uma grande resistência em migrar ao ambiente digital.
Esse texto é um relato de uma experiência vivida.
Logo na primeira notícia do fechamento das concessionárias em Brasília, de imediato surgiu a mensagem: precisaremos desligar muita gente da empresa. Foi assustador esse momento e me recordo de questionar a um dos Diretores: “com qual critério vai definir isso, diante de um momento tão caótico.” Ele me respondeu de pronto: “meu critério será você!” Obviamente, fiz uma cara de “que diabos esse homem está falando?!?”. Ele seguiu: “Desirée, no seu ponto de vista, pensando de imediato em um plano de ação para esse momento, como você construiria a sua equipe de vendas?”.
Bem, nesse momento eu só conseguia pensar: lascou-se. Nunca vivi uma pandemia, as maiores potencias mundiais estão iguais baratas tontas, o mundo em um completo caos, como vou pensar em fazer venda?
Eu vinha lendo bastante sobre tudo isso, vendo comportamento de grandes empresa, vendo o comportamento das pessoas e diante da questão dele eu respondi:
“Pedro (nome fictício), minha principal função no dia a dia é resolver problemas. Busco me alimentar de muitos dados, informações, observo bastante o meio e o todo. Não temos um case no mundo que nos ensine um possível caminho. Então vou compartilhar com você uma expectativa. Minha expectativa. Vamos iniciar um momento turbulento em múltiplos níveis, falamos de perdas humanas, materiais, economia desabando e junto disso a instabilidade geral, trazendo medo e muitas outras coisas ruins. Em perspectiva profissional, sem sombra de dúvidas, as empresas que possuem presença digital, que investiram em marketing institucional, que possui principalmente atendimento digital e estrutura adaptada para jornada de compra via esse canal, está anos luz a frente. Então penso o seguinte: presença digital e domínio desse, não é mais opção, e isso vai da empresa ao funcionário, ainda mais da área de vendas. Mas isso não é o principal, pois antevejo um momento que o papel social toma totalmente o foco. Pensa comigo: vendemos carros. Mas todos estão presos em casa. Vendemos carros, investimento razoável, e as pessoas estão perdendo emprego. Falamos de carros, mas o nosso cliente tem amigos e familiares com risco eminente de vida ou já se foi. Então vou te levantar uma questão: precisamos vender, pois somos uma empresa. Mas agora, nosso cliente está com a mente em outro lugar e nosso Pais em colapso. Você acredita que alguém vai se importar em comprar carro sendo abordado por uma simples oferta? Veja bem, mais que um vendedor cheio de “lábia” você precisa de humano. Humano que entenda exatamente como está o momento, que saiba ser paciente e cuidadoso em sua abordagem, pois a venda dele talvez não aconteça de imediato. Então na minha equipe hoje, tenho pessoas Humanas, que entendem de venda, mas que sobretudo vista a camisa e entenda que precisará se dedicar um pouco mais nesse momento, por vezes revestido de empatia e pensar soluções que some para o cliente e por consequência, a empresa. Hoje é essa visão que minha equipe desempenhará, então voltamos os nossos esforços a ajudar aqueles Pais que estarão com as crianças por 24 horas presos em casa, ou aquela família que amava viajar e por um bom tempo não poderá, ou ainda aquela pessoa que está completamente solitária.”
Ficou um silêncio que na hora pensei: será que era a hora de compartilhar esse pensamento?
Pedro me olhou, com uma cara de completa confusão e disse: “Entendi. Basicamente o que você me disse é: preciso pensar no processo a ser adotado e adiar ao máximo esse processo de selecionar quem será desligado. Faz muito sentido, apesar do caminho inserto.”
Bom, o que tenho a compartilhar aqui é que esse Diretor, o Pedro, foi o que precisou fazer menos demissões desde o início da pandemia. De imediato, ele convocou uma reunião com toda a sua equipe de vendedores e gerentes, e nela fui convidada a compartilhar esse raciocínio. Passamos 1 semana desenhando estratégias e processos, pensando em abordagens, apresentação do veículo, como derrubar tabus do tipo “comprar um carro on-line”, roteiros de atendimento e soluções para redução de dividas e parcelas de clientes já da casa. Sustentamos a média de vendas por 4 meses e fomos sentir a queda, ainda sim mínima, a partir do pico que passamos na cidade. Quando grandes empresas optaram por fecharem suas lojas temporariamente, dedicar seus esforços para somar a sociedade e ao momento da humanidade, tivemos a convicção que escolhemos de fato uma boa estratégia, para além dos números.
Pela primeira vez me vi com uma situação sem precedentes, nada em livros, apenas suposições, e isso na prática nos leva ao verdadeiro leilão: pode ser que dê certo, pode ser que não. Mas ai me remeteu a uma conversa que tive com um dos meus mentores, justamente da área de antropologia, que me marcou com essa frase: “quando o meio não tem força para ditar, ele precisa se adaptar.” Nesse mundo, coisas coexistem e sempre será um jogo de adaptações, repletas de sinais do que pode vir a ser, e uma coisa é fato: o Ser é o ponto central, o Ser Humano. Ainda estamos na pandemia, ainda é tudo incerto e inconstante, nesse exato momento atingimos 7.718 mil mortes no DF, tenho amigos e familiares somando a essa estatística e ainda vendemos carros, eu e Pedro.